Samuel Úria
CCVF

Guimarães
2 de Abril 2010




Samuel Úria tem vindo a conseguir fazer crescer o seu público, com a sua atitude descontraída e com a sua música que é tão ligeira como profunda.

Esta noite apresentou-se apenas com mais dois músicos, no baixo Lipas e Guel nas teclas.

Começou por apresentar o que se ia passar ou seja, usar a malta como cobaia para testar algumas mudanças no alinhamento das músicas e outras experiências mais ou menos perigosas para o prazer de quem ali se deslocou.

Com a sala bastante composta, e onde era notória a forma como este músico tem já assegurado um publico devoto.

Entre experiencias com batidas que saiam de um tipo de teclado “caixa de ritmos” e outras menos surpreendentes mas muito bem conseguidas, garantiram um fim de noite descontraído e onde os sorrisos e brilho nos olhares davam prova de um saldo bastante positivo a mais uma performance única deste músico que segue o seu próprio caminho, á sua maneira.




ENTREVISTA



O teu papel na FlorCaveira é importante. Fizeste parte do seu nascimento, como é que se passou?
Eu não estou na génese, até porque a coisa nasce um bocado da cabeça do Tiago (Guilul) e ainda hoje mesmo que ele não estivesse a gravar discos continuaria a ser o líder, quase um presidente com o poder de veto em relação às coisas que se passam.
Eu estou na FlorCaveira enquanto crescimento e desenvolvimento a tornar-se uma editora. O Tiago fala comigo logo em ’99, não havia ainda uma ideia definida, havia um manifesto... Em 2000 acho eu, aparece o site, sem musica, tinha critica musical, tinha contos, banda desenhada, pessoal a escrever para lá e a musica foi surgindo aos poucos, apesar de os discos que iam saindo faziam já referencia á FlorCaveira.
Estou nesse processo todo até se tornar numa editora, sim. Digamos que faço parte do núcleo das 5 pessoas que tem o poder decisório…

A ideia que existe é que havia ali algo que vos unia, que era a religião Baptista. Isso ainda se passa hoje, que papel é que teve no inicio?

A FlorCaveira nasce com essas tais 5 pessoas que tem em comum esse tal factor da religião que professamos e por ser uma religião “desviante” por assim, tendo em conta que estamos num país predominantemente católico, e acaba por ter a sua importância. Eu não sei se a coisa se fica pela religião, ou já em consequência dela, nós sermos todos amigos e termos alguns gostos em comum, tal como posições morais, éticas e filosofias, etc., mas é indesmentível que a religião faz com que haja essas afinidades tão grandes.
Mas a verdade é que actualmente temos pessoas que não professam a mesma religião mas que achamos interessantes e que tem lugar na FlorCaveira.
Acho que existe um núcleo de amizade que fazem com que as pessoas estejam quase devotas a esse ideal da FlorCaveira, que não é uma coisa muito definida enquanto ideal, não é uma coisa estanque enquanto conceito mas que nós despercebidamente sabemos o que é preciso para fazer farte da FlorCaveira.

Uma definição rápida do que é hoje o espírito FlorCaveira?
A FlorCaveira sempre congregou gente que para além do gosto musical, acreditava na democratização da música e que não são precisos grandes meios nem para fazer nem para se apreciar musica. Obviamente sempre fomos condicionados pela falta de meios e gravar discos de forma rasteira mas havia muita musica que nós consumíamos de gente que gravava com as mesmas condições, até músicos consagrados que volta e meia faziam discos de low-fi e de forma descomprometida em termos de arranjos, editoriais etc., e a ideia de puder fazer discos, de puder concretizar o teu gosto musical em objectos, sempre senti esse conforto na FlorCaveira, essa identidade das coisas não serem complicadas na maneira como abordas a musica e com que concretizas a musica, isto é, não só chamar os amigos e mostrares mas puderes tornar isso em bens consumíveis de uma coisa que fazes com o coração.

Qual é a tua relação com a musica e depois com a criação dela?
Eu sou um consumidor de música algo desregrado, por exemplo em relação ao Tiago Guilul não sou um melómano no sentido de andar á procura de coisas novas e estar sempre a par, mas gosto muito de música, e é claro que hoje em dia ninguém conseguiria viver sem música, e eu faço parte da corrente maioritária das pessoas que gostam de música porque é impossível não gostar de música.

Enquanto fazedor de música, não te sei explicar, as coisas surgem com alguma naturalidade e então não posso propriamente traçar nem trajecto nem concepções. Não posso acercar-me de condições que me levaram a criar música.

É verdade que aí a religião ajuda muito na medida que somos desde miúdos instados a termos a nossa própria expressão musical. Nas nossas próprias comunidades há muito aquele apoio a quem aprende um instrumento… algumas das comunidades acabam até por ensinar as pessoas a tocarem, ou então há o que acontecia na minha comunidade que não havia ninguém a ensinar mas quando sabias tocar guitarra eras logo chamado para tocar para as pessoas, etc. Então eu nasço com condições muito favoráveis, a minha estudou música e foi professora durante alguns anos.

Por outro lado o meu gosto por escrever e até alguma facilidade preguiçosa… eu falo disso no disco, das coisas serem fáceis e por isso eu as fazer, mas se por outro lado não tivessem um mínimo de reconhecimento também não me metia por aí.

Mas nesse jogo de eu puder fazer uma coisa que não me custa e ao mesmo tempo estar a ser reconhecido é aquela coisa de “win-win situation” [risos]

Como surgiu o “Nem Lhe Tocava”? Partiu de um conceito ou foi aparecendo?

Não há propriamente um conceito, apesar que depois ao olhar para o disco encontrar coisas que mesmo não tendo forçosamente que revelar, mas consigo ver que existe algo nem que seja temático á volta de todas as faixas, mas nasce até mais da minha necessidade de fazer um disco extenso, depois de ter um longa duração antigo que pouca gente conhece, pode ser a coisa mais rafeira do mundo, mas agora tornou-se um objecto de culto porque esgotou.

Tinha feito um disco com a minha banda de punk-rock Velhas Glorias, umas coisas feitas para a Antena 3 e colaborações em compilações FlorCaveira, e eu achei que era altura de fazer um longa duração.

O disco era para ser um vintage na linha FlorCaveira, gravado em casa, um bocado desconexo em termos sonoros, gravado aqui e ali, não ter uma espinha dorsal que depois acabou por se concretizar numa banda na maior parte dos temas. Entretanto a Valentim de Carvalho mostrou curiosidade sobre as coisas que a FlorCaveira estava a fazer e houve uma proposta de uma parceria em alguns discos e este acaba por ser o primeiro que nasce dessa parceria, editado metade pela FlorCaveira e outra metade pela Arthouse que faz parte da Valentim de Carvalho, e então isso ajudou que o disco se atrasasse… estar á espera que o estúdio ficasse livre, e a própria existência de um estúdio obrigou-me a repensar o disco, de eu querer fazer um disco mais ligeiro, com uma banda fixa a tocar em quase todos os temas, uma coisa mais aberta em termos sonoros… e por ser mais aberto em termos sonoros deu-me a liberdade de fazer um álbum mais fechado em termos conceptuais, e isso passa um bocado despercebido mas eu quis fazer isso sim.

Fala-nos do teu processo criativo.

Eu tenho muita dificuldade em pensar como as coisas me surgem.

De repente cria-se um vazio na minha cabeça do processo criativo… é um processo de eliminação, ter sempre coisas a passar-me na cabeça e quando finalmente consigo eliminar muitas delas e apanhar algumas que me interessam é que as transformo em música e isso pode acontecer em qualquer altura.

De vez em quando tenho musicas que faço por encomenda… vou tocar a um lado ou para determinado fim seja para uma cerimónia ou como neste disco que tem duas musicas que fiz para um teatro aqui em Guimarães, mas é sempre uma coisa que sai com bastante naturalidade e não é um processo muito intelectual.

Obviamente que tenho dificuldade em acreditar naquela coisa transcendental da inspiração etc., mas acredito há processos que eu tenho que me facilitam e as coisas surjam com naturalidade, e às sem dar por mim já tenho uma letra escrita e depois já está musicada, ou surge uma musica com a parte lírica já construída mas não consigo precisar como as coisas acontecem.

Quase como se entrasse num transe e quando saio as coisas já estão feitas.

Em relação às tuas influências musicais, literárias ou outras…
Eu como á partida não excluo quase nenhum estilo musical e como ouço, compro e consumo coisas de muitos género, também tenho dificuldade em cristalizar as minhas influências principais.

Tenho influências maiores, e isso é também um bocado comum aos antigos da FlorCaveira. Temos uma reverência pelo Dylan, Cohen, Waits e em Portugal todos nós fomos influenciados pelo António Variações, pelos Herois do Mar… mas acho que a minha influência maior, até porque é a minha primeira paixão consciente musical são os blues, por causa da simplicidade e não serem propriamente um estilo mas uma formula… são três acordes que se repetem e a grande parte dos músicos que admiro a usarem.

Depois não estou nada preocupado em criar algo de novo nem sequer reinventar, é uma questão de utilizar essa fórmula em meu proveito.

A música, sentes que é algo que te imaginas a fazer de alguma forma durante muito tempo, é algo que sentes necessário neste momento, como ser criador e porque te dá prazer?
Se me perguntares o que eu preferia, claro que eu preferia que a musica de repente se tornasse a minha vida.

Eu estive quase 10 anos a fazer música por gosto, a meter dinheiro para puder pagar os discos e a pagar para ir dar concertos aqui e ali. Agora tenho o lado bom, que acho quase pode ser justiça poética depois desse tempo todo a apostar num gosto, ter gente a apostar, ter gente a querer assumir as partes chatas como fazer dinheiro com isto.

Eu não faço planos em relação á música, mas tenho obviamente de assumir responsabilidades de gente que está a fazer planos comigo e então está-se a tornar algo por lado apetecível mas por outro lado uma coisa que eu tenho de começar a encarar com seriedade que felizmente até agora não me está a afectar em termos de produção musical, mas que tenho de assumir sem que me prejudique no aspecto criativo.

Felizmente consigo ver que pelo menos num futuro próximo vou conseguindo assumir a música quase como uma profissão e isso dá-me me muito gosto.

A tua música parece ligeira e até lúdica, mas ao mesmo tempo é profunda, eu diria que olha mesmo para o abismo, é comovente. Que tens a dizer?
É assim… até por questões de gostos e urgências musicais é obvio que no futuro vou querer fazer coisas mais fechadas, mais difíceis de consumir.

Este disco não é completamente aberto, mas é-o mais do que fiz até aqui, e muitas vezes o meu esforço com ele foi tentar explorar coisas mais pesadas mas caramelizadas de alguma maneira.

Só o facto de ter uma banda com gente a tocar muito bem comigo, como estes miúdos dos Pontos Negros que são músicos talentosos, tenho o Miguel que é a espinha dorsal de qualquer coisa que ele se meta, ajuda-me a ter objectos “descomplicados”, da coisa puder viver só pela sua musicalidade e as pessoas não estarem tão concentradas em coisas mais pesadas que eu queira exprimir através da musica.

Por isso eu às vezes lhe chamo de música ligeira, que ainda tem alguma conotação depreciativa em Portugal, e eu gosto de assumir esse aspecto, da música puder ser algo alegre, cantarolável mesmo quando intrinsecamente não é alegre e cantarolável.

Eu quis contrariar, (e isso chateou alguma gente que já me conhecia e apostava em mim), contrariar aquela ideia de que o disco tinha de ser estudado e não um disco que pudesse ser ouvido. Eu quis que fosse o inverso… que a reflexão viesse mais tarde.


O que sentes no palco? E o que queres fazer passar?
O palco é um sítio confortável, isto também é comum na FlorCaveira. É um sítio onde podemos ser aquilo que gostaríamos de ser, e ser aquilo que somos mas que não podemos assumir na vida real por assim dizer.

Eu se calhar ainda vou ter de amadurecer um bocado e sentir o palco com mais responsabilidade, mas eu vejo-o como um sítio onde posso comunicar com as pessoas, posso dar às pessoas algo que não posso em outras áreas da minha vida, é um sítio bom de se estar.

Apesar de agora andar sempre a viajar, tocar em vários sítios, por outro lado é uma coisa muito divertida e ficamos às vezes mais contentes com o sucesso que as pessoas nos reconhecem do que aquilo que nós sentimos que demos ás pessoas. O simples facto de sabermos que fizemos as pessoas passarem um bom bocado é por vezes superior á qualidade musical e ao que queremos atingir com a nossa musica.

Um próximo álbum, já pensas nisso?
Não tenho planos, pelo menos para fazer um LP não tenho planos agora.

E projectos?
Tenho um disco que gravei no ano passado no dia 10 de Junho. Escrevi as letras, musicas e gravei tudo no mesmo dia, e isso irá sair entretanto.

Aí volta ás raízes da Flor Caveira, a coisa de low-fi, uma coisa não tão fácil de ouvir… e provavelmente sairá também em Junho.



Um bom concerto hoje e venha de lá o disco!


FOTOGRAFIAS : IAC
TEXTO E ENTREVISTA : RICARDO COSTA

AGRADECIMENTOS
CCVF , GUIMARÃES


.

Sem comentários:

Enviar um comentário