ENTREVISTA COM JOÃO CORAÇÃO

À CONVERSA COM
                                     JOÃO CORAÇÃO

Entrevista realizada no dia 06-03-2010,
em Vila Nova de Famalicão,
Casa das Artes e concluída por mail dia 11-03-2010.



A tua forma de criar música surgiu como um acto de dar á luz… fala-me disso.

Nada sei sobre ser pai, ainda, muito menos sobre dar à luz, mas em tempos fiz essa analogia, que nem é originalmente minha. Muitos artistas usaram já essa ideia para exprimir a criação. Quando digo “dar à luz” quero dizer que a canção cresce dentro de mim sem que eu lhe veja a cara [sem usar a ecografía] e depois um dia, não quando escolho, tenho de parir a música. Ela sai a mais ou menos custo, mas quase sempre de uma vez.

Qual a tua religião e qual a tua ligação com a mesma?

Sou um ser religioso e sou católico. Nem sempre fui.
Nasci católico, fui baptizado e depois, bem cedo decidi que não era religioso e afastei-me da cruz. Mantive-me assim até a maioridade, quando ganhei juízo e um pouco de humildade. Uma relação séria está-se sempre a redefinir, não há outra forma e é nessa viagem que me encontro, por isso nenhuma resposta hermética seria justa, porque podia acontecer, que quando eu acabasse de escrever, a minha verdade tornar-se numa mentira, por me ter apercebido de algo novo enquanto pensava. Ou talvez devesse fazer isso e depois apagar para escrever por cima, como os grandes pintores quase todos, pintam por cima vezes sem conta.

Que papel tem actualmente a religião na FlorCaveira?

A pessoa indicada para responder a essa questão é alguém do órgão, mas adianto sem medo que a FC não é um órgão religioso, é mesmo uma editora, sendo que o seu corpo directivo é protestante Baptista.

A descrição como foi gravado o teu 1º álbum é no mínimo caótica… o que não se liga muito com a imagem que passa hoje… queres elaborar?

Bem, as descrições que eu li do processo de gravação são bastante fiéis. Eu tinha 40 ou 50 canções e convidei o Jorge, o Tiago e o Samuel para um jantar onde lhes fiz a proposta. Inicialmente além da interpretação pedi ao Tiago também para produzir, mas assim que começamos ele entendeu que eu era teimoso de mais e que afinal tinha já uma ideia acerca do processo. Resumindo, quis honrar a espontaneidade de cada um e dei-lhes o mínimo de pistas possíveis. Não sabiam ao que iam e mesmo assim avançaram sem me perguntar muito.
Eu transportei sozinho um estúdio inteiro para aquela casa, e espalhei instrumentos pela sala. Eles ao chegar sentaram-se pela sala ouviam o que eu tocava e iam pegando no que lhes apetecia. Quando parecia que já conheciam a música eu carregava no "record", quando parecia que já a estavam a tocar satisfatoriamente eu já tinha parado de gravar. Assim como os 3 vieram outros 10 e fizemos o disco, ali, sem medo. A seguir a uma música decidia-se a próxima.



O teu 1º álbum, que relação tens com ele hoje?

Devia ouvi-lo mais, porque acho um belo disco, cheio de coisas bonitas.

Como é o teu processo criativo?

Ora isso é tão relativo como são distintas as minhas composições. Já fiz canções em dois minutos e já fiz canções em dois dias. Nunca comecei pela letra, acho. O normal será letra e canção virem juntas. Por vezes vem a canção com parte da letra e depois, com calma, o resto da letra e também o resto da canção. O primeiro disco é mais das paridas e o segundo disco é mais das esculpidas.



Influencias musicais e não só, que sintas que fazem parte do que crias hoje musicalmente.

Sendo muito atento, é natural que a percepção das coisas me molde e igualmente natural que o meu mundo perceptivo se manifeste quando crio. Oiço música muito variada desde miúdo. Os meus pais levaram-me pela primeira vez a um concerto tinha eu 5 anos e ele era o Wim Mertens, lá em casa ouvia-se erudita, MPB, Léo Ferré, Dylan, Beatles e Fausto.
Passado um ano ouvia já The Cure, Whaterboys e The Smiths e passados outros 4 já ouvia Tom Waits. Tudo graças aos senhores meus pais, à minha irmã e ao meu tio Pedro. Aos 14 tive a minha incursão no grunje e no metal. Mais uma vez, ganhei juízo na maioridade e hoje oiço de novo os discos dos meus pais à excepção de alguma música portuguesa e um ou outro estrangeiro.



A importância da literatura na tua musica, qual literatura e como influencia, etc.

Eu não leio muito. Sei que isto parece mal ou uma resposta fabricada, mas é a verdade. Posso dizer o mesmo há já um ano, o último livro que li foi a Ilíada e sinto-me cheio até então. Depois li o livro do Tolentino, que não conta como livro. É uma jangada lançada ao rio, na qual entrei.



Qual a tua relação actual com o cinema? Sempre vais para a frente com a longa-metragem?

Certamente. Quando não sei. Tenho de mergulhar de novo no cinema. Aí vai ser bom.



Vamos recuar e falar da tua infância… fala-me sobre como foi e o que sentes em relação a esses tempo… como achas que te marcou essa fase?

Sou um tipo com sorte. Dizia no outro dia numa conversa "a vida poupou-te" ao que me responderam: "e a ti?, não te poupou?". A minha infância é uma arca de tesouros. O próprio Rilke, acerca de inspiração, ou da falta dela, nas cartas a Kappus diz algo parecido com - mesmo que estivesse aprisionado, entre paredes brancas, longe do som do mundo, haveria sempre o tesouro da infância, a riqueza da memória. (as palavras não são estas, mas a ideia) -
...e é verdade, podia passar o resto da vida a escrever sobre a minha infância, mas ainda não cresci tanto e nunca fui preso. Sobre a minha infância é ouvir os Doze Anos do Chico Buarque. Está lá tudo.

Fala lá do teu percurso escolar, parece ser pouco monótono…

É verdade. Mas não fui em que inventei a falta de monotonia. Como sabes vivi a minha infância em Lisboa, no Restelo e fui depois para Aveiro: passei por 4 escolas até chegar ao Liceu. O Liceu foi belo e as escolas superiores 3. Estudei Arquitectura, Som e Imagem e Cinema. O último curso foi o único acabei. Como escrevi já em outra circunstância "é que eu não estou bem a fazer nada, eu só estou bem a fazer tudo".



Como chegaste então a isto de gravar álbuns e afins?

Tinha acabado cinema e comecei, sem querer, a fazer canções. Quando tinha as primeiras 40 achei que dava um belo longo disco triplo, e foi com essa ideia que chamei os 3. Era para em 5 dias gravar pelo menos 30. Achei que ia dar.



A música, sentes que é algo que te imaginas a fazer de alguma forma durante muito tempo, é algo que sentes necessário neste momento, como ser criador, fala-me disso.

Neste momento não sinto necessário. Mas é intermitente, por isso espero que volte em breve. Gosto quando sou agraciado pela fertilidade. Na verdade o ímpeto é constante, a sensação de que me deitei sem criar dá-me um sono mais leve, mas os momentos de materialização são intervalados. Talvez os espaçamentos agora sejam maiores por não ter assim tanto tempo para fazer "só o que me apetece". No entanto não me posso nem devo queixar.



O que sentes no palco? E o que queres fazer passar?

Como formulei no outro dia, há um mediador entre mim e as pessoas que me assistem. Uma forma que parece veículo e agente ao mesmo tempo. É a música e não é veículo nem agente. A música não é do terreno e não chega a ser o céu. Se há um limbo, o limbo é a música.
Eu tento chegar à música e quando chego, ela por si chega às pessoas ou ao céu e faz tudo sozinha. Só me preocupo em chegar a ela e há dias em que quase não lhe toco.



Qual a tua relação com a critica, positiva ou negativa?

Isso é uma pergunta interessante e politicamente incorrecta. Cito de novo o Rilke; será político da minha parte fazer uso de uma citação? Não me considero um ser político, mesmo assim aqui vai:
(agora com palavras exactas, fui buscar o livro) - "Nada está mais longe de tocar numa obra de arte do que palavras críticas: delas resultam apenas mal-entendidos mais ou menos felizes."

Isto foi escrito no final do século XIX ou já no início do XX, mas podia ter sido hoje ou há uns bons anos atrás.

A crítica prende-se com aspectos meramente formais e é quase sempre pensada: ou com o "rabo entre as pernas" por uma ou outra razão; ou para provocar determinada reacção aos seus leitores; ou para provocar simpatia entre os seus compinchas; ou para medir poder. É raro o crítico que assenta num movimento de aproximação. Falo da crítica da arte em geral, da crítica além-música, que é das formas de poder mais próxima da política que eu conheço.
A minha relação com a mesma é consequente do que acabo de dizer. Na verdade gosto de ler quando me fazem grandes elogios, mesmo me parecendo, quase sempre, que não falam sobre o que interessa. Igualmente não me é querido, nem tem sobre mim efeito inspirador, ler palavras feias acerca das minhas prestações. Não é agradável pelas razões claras, não é inspirador porque ainda estou para ler alguma verdade. Mas lido com ambas as experiências "boas e más" críticas com alguma descontracção.

Creio que devíamos ter a coragem de admitir que na arte quase nada é catalogável, compreensível, mas inefável.
Como dizia o poeta José Tolentino Mendonça em Grafito:
O poema pode conter:
coisas certas, coisas incorrectas, venenos para
manter fora do alcance
excursões campestres, falhas de memória
uma bicicleta caída junto às primeiras paixões
sombrias
Pode conter Le martin, Le midi, Le soir
audácias típicas de um visionário
uma guerra civil
um disco dos Smiths
correntes marítimas em vez de correntes literárias



O lado da fama, seja a que escala for, o que sentes acerca desse estatuto?

Não é um estatuto, é um idioma.



Projectos imediatos e a longo prazo

(...)

Um 3º álbum? Em que contornos? Já pensas nisso? Revela lá.

Não pensei nisso.



O que procuras sentir durante o processo criativo?

Verdade, satisfação e depois verdade.

Que músicos e linhas musicais actuais te agradam neste momento?

Da música da actualidade, além dos portugueses que posso citar: Norberto, (Tiago) Guillul, Camané, B-Fachada, (Diabo na) Cruz, (Samuel) Úria, (Manuel) Fúria, Cão (da Morte) e Coelho (Radioactivo), etc., há alguns projectos que me aliciam, apesar de não estar tão bem informado, gosto de Fleet Foxes, gostei bastante do último dos Arctic Monkeys, não gostava antes, também ouvi muito o disco dos Arcade Fire. Depois, como é claro, o Dylan e o Waits, mas esses não são actuais, são futuristas.



Qual é a tua impressão geral, depois de andares nisto há uns 3 anos?

Em relação a quê? Ao meu processo criativo? Ainda estou a começar. Ainda estou à procura de uma linguagem.3 anos para mim foram muito pouco.



Amante de vinhos certo? Fala-me disso…

Pouco a dizer. Bebo menos hoje do que há dois anos. Há dois anos bebia um ou dois copos à refeição. É uma bela artesiana o ofício do vinho.



Tens hobbies? Quais?

Não tenho. Tudo o que faço é com intenções mais largas do que ocupar o tempo.







Uma forma de estar, um homem, um músico, um criador… um nome a ter em conta no panorama musical (e criativo) do nosso país: João Coração.

ENTREVISTA DE RICARDO COSTA

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